Centenário de James Mason – Parte 1

James Mason– I have a passion for James Mason.
– Is he good?
– Absolutely terrific. So attractively sinister! Taurus, the bull, you know.
– Very obstinate.
– Really?

Diálogo de Festim Diabólico (Rope, Alfred Hitchcock, 1948)

Certa vez li uma definição certeira de que Mason nos anos 40 era a personificação de Heathcliff, Mr Rochester e Mr Darcy num mesmo pacote, não por acaso as três personagens são criações de mulheres, explicando e muito o que nós realmente queremos. Por isso meu amor, nada de aprender a ser homem com Wayne, McQueen ou Belmondo, aprenda a ser homem com James Mason e sua natural tendência byroniana, este sim faz um estrago danado.
Relembremos alguns de seus momentos, só os que pude conferir pessoalmente, listando os filmes em ordem dos que mais me apetecem e não necessariamente de seus melhores papéis. E que todos me perdoem o deslumbramento evidente, mas a sua presença em cena me é tão divina quanto o espirito santo anunciando a Maria.

1- Intriga Internacional (North by Northwest, Alfred Hitchcock, 1959)North by Northwest (1959) Cary Grant, James Mason, Eva Marie SaintHas anyone ever told you that you overplay your various roles rather severely, Mr. Kaplan?
Não é deveras gratificante ver dois baluartes da elegância inglesa como rivais num dos melhores filmes do mais elegante dos cineastas britânicos? Por mim, Hitch, Cary e James poderiam fazer filmes juntos por 30 anos consecutivos e jamais ficaria menos do que satisfeita. Diante de tamanha elegância, não à toa, tanto Grant quanto Mason foram cotados para encarnarem o Bond primordial, além do fato de que todos os filmes do agente 007 nos anos 60 sofreram influência clara de Intriga Internacional. Uma cena que sempre me chama atenção é a fala de Mason criticando a sobreatuação associada ao Actor’s Studio, nesse mesmo momento nota-se Martin Landau, um notório aprendiz do método, saindo de cena. Sabendo da conturbada relação entre Marlon Brando e Mason, tal cena adquire contornos ainda mais requintados, Mason sempre fora o rei da economia no ato dramático, tudo que precisava passar o fazia só com suas complexas e sutis expressões faciais e corporais, ao contrário da geração Actor’s Studio surgida nos EUA a partir dos anos 50 e pela qual Hitchcock nutria um especial desprezo. Esse negócio de engordar, emagrecer, não sair da personagem as 24 horas do dia definitivamente não era para Mr Mason que sequer usava maquiagem, por mais discreta e neutra que fosse. Portanto, qualquer pessoa que mencione James Mason como o maior ator que o cinema já apresentou, terá meu respeito eterno.

2- Delírio de Loucura (Bigger Than Life, Nicholas Ray, 1956)Bigger Than Life (1956)Childhood is a congenital disease – and the purpose of education is to cure it. We’re breeding a race of moral midgets. Esse é o Farrapo Humano da cortisona, é o Mason doidão em seu ápice e facilmente entra para a lista de suas melhores atuações. É um grande filme dos anos 50 que muito lembra o cinema de Douglas Sirk, tanto na utilização de cores quanto no drama da família aparentemente perfeita a desmantelar-se, com um porém de que o pai de família vivido por Mason vira uma espécie de Jack Torrance da cortisona, o que não era muito habitual nesses pequenos dramas de subúrbio. Acho pouco provável que seja mera coincidência Mason ter sido uma das raras pessoas autorizadas a visitar o set de filmagens de O Iluminado, como Kubrick não fazia nada à toa, é bem provável que isso tenha alguma relação com Bigger Than Life e um possível lampejo de influência em Jack Nicholson, afinal, GOD WAS WRONG!

3- O Condenado (Odd Man Out, Carol Reed, 1947)ODD MAN OUT - William Hartnell & James MasonPrimeiro da indefectível trilogia noir do homem em fuga cometida por Carol Reed (seguida com O Terceiro Homem e O Outro Homem) e provavelmente o mais fatalista dos três. Trabalhando pela primeira vez com o tio do Ollie, Mason interpreta um líder do IRA, ferido e acuado pelas vielas e becos escuros dos quais Reed tanto gostava. É uma jornada longa e cansativa para lugar nenhum, onde os tipos peculiares que o homem em fuga encontra pelo caminho delineiam e erguem a narrativa, sobretudo porque Mason permanece em estado constante de delírio e rastejar, é quase uma odisséia homérica quando nada mais importa além de voltar para casa e para uma cama quentinha, ou melhor, uma espécie de odisséia joyceana, não só porque se passa na Irlanda, mas porque dividem lugares, situações e personagens que muito se assemelham com os rompantes literários de James Joyce. Foi com este filme que me apaixonei por Robert Newton, um dos mais notórios bêbados do cinema inglês, aqui no papel de um pintor ensandecido e tipicamente irlandês.

4- Cruz de Ferro (Cross of Iron, Sam Peckinpah, 1977)CROSS OF IRON - James Mason, David WarnerSeguindo com a triste sina de trabalhar com os maiores cineastas de sua época, Mason vive um coronel alemão num dos poucos filmes de que participou sobre a Segunda Guerra que mostra certa afinidade com seus ideais na vida real, Mason era uma espécie de Private Joker do mundo do cinema, onde era terminantemente contra a guerra, embora tivesse participado de inúmeros filmes pró-guerra. Mesmo ocupando um alto cargo militar e despertando certa antipatia na personagem de Coburn pelo simples fato de estar numa posição de comando (num tipo de discussão que Kubrick retomaria dez anos depois com o seu Nascido para Matar), a personagem de Mason é um frescor de sensatez em meio a mais uma guerra insana, cheia de pessoas insanas, nesse amargurado, complexo e subestimado relato.

5- Lolita (Stanley Kubrick, 1962)LOLITA - James Mason & Peter SellersBecause all the best people shave twice a day. Primeiro filme de Kubrick depois do alojamento de mala e cuia na Inglaterra, o início de sua entrega à cultura britânica e no direito de nos presentear com os dois maiores atores com quem trabalhou: Mason e Sellers. Tão grandes e tão inversamente proporcionais, tudo que há de economia dramática em Mason, há de exagero em Sellers, é um duelo e tanto, especialmente porque nem dá para lembrar daquela guria que deu nome ao filme. Há um fator que precisa ser mencionado, Sellers é sem dúvida um dos meus atores favoritos, daqueles mesmo adorados, só que perto do Mason ele me irrita profundamente, pois num diálogo o meu reflexo imediato é sempre observar a reação de Mason ao interlocutor e o Sellers é aquele cara que praticamente fica pulando em cena para chamar a atenção para si no melhor estilo “filma eu, Galvão!”, o que não é de todo mal, já que Mason acaba por segurar as pontas lindamente sem cair no que para nós seria uma inevitável gargalhada diante das improvisações sellerianas. Ainda assim o filme é um desses casos dolorosos de subestimação, chegando ao absurdo de alguns afirmarem que a versão de Adrian Lyne é melhor do que a de Kubrick, o que é uma ofensa, especialmente porque a versão de 1962 sobe no meu conceito cada vez que a revejo, o que dará a possibilidade de que até o final da vida possa considerá-la como obra prima absoluta.
Reza a lenda que Kubrick chegou a denominar Mason como genial, adjetivo este que Stan não fazia tanta questão de usar para com seus atores, também pudera, de todos as personagens das obras de Kubrick, o Humbert de Mason é o único com poder real de destroçar o coração do público, um raro momento onde o coração se sobrepõe ao cérebro dentro da carreira do cineasta e a culpa é exclusiva de Mason, ele transmite tanta dor, entrega, paixão, desespero e devoção que fica impossível não se condoer pelo seu Humbert, não é passível vê-lo como pervertido ou ter obscurecida sua aura de trágico herói romântico e jamais são usados artifícios baratos para que se consiga tal atmosfera, o exemplo máximo disso é ao final quando Humbert começa a chorar e o foco fica na reação de Lolita, enquanto Mason tenta se esconder, Kubrick faz o mesmo com sua câmera em relação a ele, qualquer cineasta ou ator ordinário adorariam um aguaceiro piegas, o que evidentemente não é o caso aqui.
I want you to live with me and die with me and everything with me. Ah… Suspiros eternos.

6- 20.000 Léguas Submarinas (20000 Leagues Under the Sea, Richard Fleischer, 1954)20,000 Leagues Under the Sea - Paul Lukas, Kirk Douglas, Peter Lorre & James MasonI am not what is called a civilized man, Professor. I have done with society for reasons that seem good to me. Therefore, I do not obey its laws. Lembro quando esse tipo de filme ainda passava na Sessão da Tarde, até O Mágico de Oz cheguei a ver quando a programação de tv era mais decente, hoje em dia nem os clássicos dos anos 80 passam mais… Imagino o quão fantástico era ir ao cinema em 1954 e dar de cara com uma aventura desse porte, presumo que tinha um peso semelhente com ir ver Guerra nas Estrelas em 1977, Indiana Jones em 1981 ou O Senhor dos Anéis em 2001, talvez até com um deslumbramento maior. Aqui Mr Mason é ninguém menos que Capitão Nemo com uma barba que cai-lhe muito bem e com o poder de fazer com que o sempre suspeito Peter Lorre pareça um cordeirinho ao seu lado. Se em meados dos anos 50 o temor era crescente sobre os perigos do mal uso da tecnologia, em tempos de ascenção da guerra fria e iminência de guerra nuclear, agora continua com a mesma atualidade, mas nem por isso o McG precisa fazer sua versão com um Will Smith ou um The Rock como Nemo. Ugh!

7- Os Amores de Pandora (Pandora and the Flying Dutchman, Albert Lewin, 1951)Ava Gardner & James Mason (Pandora and the Flying Dutchman)Perhaps you haven’t found what you want yet, perhaps you’re unfulfilled. Perhaps you don’t even know what you want, perhaps you’re discontented. Discontentment often finds vent through malice and destruction. Num dos mais memoráveis romances das telas, Mason e Ava Gardner se unem no segundo dos quatro filmes que fizeram juntos, a explicação para tantas parcerias é a inevitável química que possuiam em cena, dos quais o melhor casal sem dúvida é o formado por Pandora e seu holandês errante. É sim o filme mais bonito do qual Mason participou, tanto no sentido estético quanto no poético, possui deslumbrante fotografia de Jack Cardiff, texto primoroso baseado na mitologia, além de um sentido de fantasia, de fatalidade, do que é eterno e de beleza etérea com o qual estamos pouco ligados hoje. Um exemplo máximo onde Eros encontra Thanatos equitativamente sem perdas, nem danos.

8- Crescei e Multiplicai-vos (The Pumpkin Eater, Jack Clayton, 1964)The Pumpkin Eater (1964) - James Mason, Peter Finch, Anne BancroftPérola que só o cinema britânico dos anos 60 podia proporcionar. Logo depois de sua obra prima Os Inocentes, é a vez de Clayton nos satisfazer com mais um conto de uma mulher madura, só que agora trocando a histeria e o horror por crises conjugais, depressão e humor negro. Quem assume a tarefa é Anne Bancroft no que talvez seja o grande papel de sua carreira, apoiada não só por Mason com sua persona mais asquerosa, mas também por Peter Finch, Maggie Smith, Yootha Joyce e Sir Cedric Hardwicke em seu papel derradeiro.

9- Coração Prisioneiro (Caught, Max Ophüls/Robert Aldrich, 1949)Caught (1949) - Barbara Bel Geddes & James MasonMesmo Caught sendo um melodrama, possui tratamento de filme noir e é a mão de Ophüls que faz toda a diferença. Enquanto Mason encarna uma das suas mais apaixonantes personas (algo que Ophüls lhe proporciou em dose dupla naquele ano), a personagem de Robert Ryan acaba roubando a cena com seu charme e excentricidade, no que  provavelmente seja o primeiro grande personagem intimamente baseado em Howard Hughes, Caught está para Hughes o que Cidadão Kane foi para Hearst. Ophüls foi responsável pela ida de Mason para Hollywood, logo depois o cineasta voltou para a Europa e nunca mais trabalharam juntos, uma pena, pois era passível de que formariam uma grande dupla a longo prazo, eles ainda planejaram uma outra parceria com a adaptação de La Duchesse de Langeais do Balzac contando com Greta Garbo como protagonista, mas que não deu certo, privando a humanidade de algo celestial que unisse Mason-Ophuls-Garbo-Balzac num mesmo letreiro.

10- Nasce uma Estrela (A Star Is Born, George Cukor, 1954)Judy Garland & James Mason (A Star is Born)l destroy everything l touch. l always have. É como Norman Maine que Mason mostra toda a sua grandiosidade como ator, conseguindo nos destroçar como nunca o fizera antes, sem jamais cair em obviedades expressivas que tanto fascinam os menos atentos. Judy Garland é grande na melhor das versões da história, mas Mason é gigantesco e estamos falando de um filme de George Cukor, por quem nutro um grande respeito, mas cuja lenda propaga que o cineasta cai aos pés de suas atrizes e esquece completamente de seus atores, portanto, se um Mason “desprezado” dá nisso, tenho medo do que seria um lembrado. De todos os grande momentos dele durante o filme, um me é especial, quando Maine está a rolar na cama decidindo seu fatídico ato seguinte, poucas vezes na vida pode-se ver um ator passando tanta dor e desespero, inclusive tal momento foi homenageado pelo duo Visconti-Berger no Ludwig de 1972. Mason é tão resplandecente e inesquecível neste seu papel mais emblemático e pelo qual é mais citado, que vire e mexe em qualquer parte do mundo alguém faz alguma imitação de James Mason bêbado, aliás, ele sempre foi um prato cheio para imitadores em geral (Jon Hamm? Eddie Izzard? Mason é deus, oras), por conta de seu timbre de voz e empostação únicas.

11- Quase um Criminoso (A Touch of Larceny, Guy Hamilton, 1959) A Touch of Larceny (1959)Ah, a comédia britânica dos anos 50! Ah, a comédia britânica de sempre! Mason nunca esteve tão charmoso e irresistível, essa sátira de espionagem da Guerra Fria é um exemplo perfeito do porquê Mason fora cotado para encarnar James Bond, justamente nas mãos do cineasta que nos daria o melhor filme daquele agente igualmente mulherengo e elegante. Além disso é a mais engraçada, inteligente, sexy e refinada comédia da qual participou.

12- Cinco Dedos (5 Fingers, Joseph L. Mankiewicz, 1952)Five Fingers (1952)Mason desta vez é um mordomo, no melhor estilo “Jeeves da espionagem”, baseado no lendário Elyesa Bazna. Muito me intriga tal homem ter rendido tão poucos exemplos cinematográficos, já que é uma personagem histórica fascinante, tudo bem que a personaficação de Mason seja definitiva tanto quanto o filme de Mankiewicz o é, mesmo com as devidas licenças poéticas hollywoodianas, mas um homem que mostrou o quanto o alto escalão nazista era amplamente estúpido ao saber de todas as informações sobre o Dia D e não usá-las, talvez pudesse render mais alguns grandes filmes de espionagem, assim como rendeu uma obscura série americana dos anos 60.

Publicado por Adriana Scarpin

Bibliófila, ailurófila, cinéfila e anarcafeminista. Really. Podem me encontrar também aqui: https://linktr.ee/adrianascarpin

10 comentários em “Centenário de James Mason – Parte 1

  1. Naquele livro do Frederic Raphael, ele diz que os atores que mais despertavam a admiração do Kubrick eram o Mason, Peter Sellers e o Leonard Rossiter (o Capitão Quin do Barry Lyndon!). Diz também que o Mason chegava a apertar tanto as mãos durante as filmagens de Lolita que no fim do dia as unhas ensanguentavam as palmas.
    Tem ainda o fato dele ter trabalhado com o Ophüls (e Lolita é o mais próximo que ele chegou dele). E não deixa de ser engraçado como ele pegou o livro e transformou no duelo de dois dos atores que mais gostava.

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  2. Lucas, é tu?
    É imprressionante como Mason não pára com as mãos em Lolita, tem uma cena em que ele está sentado na cama e parece que vai rasgar a calça de tanto esfregar a mão na perna. Aquilo é sensacional. Uma outra cena em que particularmente gosto dele no filme é aquela festinha no banheiro logo depois da morte da dona Haze, o que Mason faz alí é muito complexo e é uma cena doentiamente engraçada.

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  3. Apesar da participação dele ser ‘pequena’ em A Cruz de Ferro, valeu por lembrar.

    Faltou Os Meninos do Brasil, uma das melhores ficções existentes.

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  4. Peço desculpas, não acreditei que os Meninos do Brasil estivesse tão ‘longe’, 80° lugar… não tinha percebido.

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  5. acho que só vi mesmo o intriga internacional e meninos do brasil. o lolita eu tenho, mas to me enrolando ha um tempao pra ver. muito boa a animaçao la embaixo, a voz criou todo o clima. vou prestar mais atençao nele agora.

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  6. Falando em roubar identidade, viu o final dessa temporada do Lost? Acho que vai concordar comigo se eu disser que é só Desmond e Locke saírem de cena que o “quadrilátero amoroso” (roubei do Churrasco na Laje) afunda tudo.

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  7. AAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHH Estou me sentindo um vampiro com um monte de gente atrás de mim com cruzes e estacas!!! Onde quer que eu vou tem gente me perseguindo com Lost, nem na internet posso passear mais porque todo o maldito blog tem um post sobre o asssunto!
    Não, não vejo Lost há meses, o único escocês naufrago numa ilha deserta que vi ultimamente foi o de Sei Onde Fica o Paraíso do Powell/Pressburger, cujo papel era originalmente do Mr Mason aqui. Está tudo conectado, hahahaha

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  8. What a nice tribute you’ve done for Mr. Mason. He’s one of my all time favorite actors. I wish I understood Portuguese but at least I can enjoy the photos.

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