Centenário de Errol Flynn – Parte 1

Homem feio da porra
Homem feio da porra

But I have a confession to make.
Do you know, I think I like Mason as much as Errol Flynn?

Diálogo de Festim Diabólico (Rope, Alfred Hitchcock, 1948)

Já vou dizendo: nunca fui grande fã dele, ao menos não em virtude dos filmes, mas o mito Flynn é impossível ser desprezado, afinal, só tendo muita força de vontade para desprezar um tipo desses. O homem era sensacional, além de ser uma ode ambulante ao falo (o que é bem difícil de esquecer), Flynn seria o companheiro de boteco ideal para qualquer pessoa bem humorada. Era bonitão (lindo e gostosérrimo, na verdade) e carismático, foi muso por vários anos de Raoul Walsh e Michael Curtiz, era um homem inteligentíssimo e culto, tinha uma vida pessoal muito divertida, intrigante e ao mesmo tempo muito trágica (acho que ninguém em período algum de Hollywood foi mais espetacular do que ele) e, apesar do estigma de bonito e apetitoso eclipsar totalmente qualquer ato dramático, fazia o que era preciso além do que os detratores possam dizer.
E claro, a perspectiva talvez seja variante, mas não seria nenhum exagero dizer que Flynn pode ser o maior símbolo sexual do cinema, ninguém foi mais associado única e exclusivamente a sexo do que ele e não digo apenas dentro do mainstream, mas incluindo até astros pornôs, simplesmente porque este homem era um símbolo fálico de 1,90 de altura em todo seu esplendor e glória. Flynn não possuía um pênis, ele era o pênis em pessoa.
Então que fique aqui um top dos filmes onde vi Mr Flynn nos honrar com sua presença umidificante.

1- O Ídolo do Público (Gentleman Jim, Raoul Walsh, 1942)Errol Flynn - Gentleman JimAmm umm… então tá. Do que eu estava falando mesmo? Ah, sim, de mais uma das obras primas de Raoul Walsh.
De todos os filmes em que Flynn trabalhou, este era o seu favorito, o porquê é fácil ver, Errol está no auge: do sucesso, da forma física, dos melhores desempenhos e… solteiro! Bom, da forma física só na aparência, pois durante as filmagens ele teve o seu primeiro princípio de ataque cardíaco, com apenas 33 anos, mesmo com esse fator de risco ele continuou fazendo as próprias cenas de um esporte que dominava desde a adolescência. Devo concordar com Flynny, também é o meu favorito e nem é porque o homem passa boa parte do filme sem camisa e trajando ceroulas, mas especialmente por ser a primeira grande obra prima sobre boxe, título este que particularmente creio só ter sido equiparado quando um tal de Martin Scorsese tomou o cinturão para si nos anos 80.
Uma cena é especialmente impagável, onde Flynn e Jack Carson estão no teatro ridicularizando a maneira de atuar de um outro lutador chamando-no de ham, isso nada mais é do que uma brilhante auto-referência, Flynn e Carson eram os mais encrenqueiros, bêbados e exagerados atores sob contrato da Warner na época, ambos eram identificados como ham actors e nem todo mundo tinha estômago para trabalhar com eles, Flynn chegou a ganhar por duas vezes o prêmio Sour Apple de ator menos cooperativo de Hollywood. Gentleman Jim como um tôdo faz grande paralelo entre a arte e estilo de atuar com a arte e estilo de lutar, Walsh bate na tecla de que cada estilo dá a contribuição para se alcançar um novo patamar e isso soa lindamente se refletido em Flynn.

2- Fugitivos do Inferno (Desperate Journey, Raoul Walsh, 1942)Desperate Journey (1942) Alan Hale, Errol Flynn, Ronald ReaganÔpa, esse é filmaço! Dá até para arriscar um palpite de que este trabalho é o pai de certos filmes cultuados dos anos 60, tais como Os Doze Condenados e Fugindo do Inferno, é mantido o mesmo clima, sobretudo o bom humor, mas o que o faz ainda melhor é um distanciamento temporal que poucos os filmes de guerra dos anos 40 possuíam e que o gênero só reconquistaria a partir dos anos 50. Também é a prova do porquê Walsh é o maior diretor de cinema de aventura desde os anos 20, a ação não deixa de nos empolgar um só minuto, a dinâmica dos atores é perfeita, as situações são engraçadíssimas e não há o ranço propagandista emotivo que se via usualmente nos filmes da época. Desperate Journey mostra também o quanto Spielberg foi influenciado pelo cinema de Walsh, mas este é um assunto para uma outra hora…

3- Capitão Blood (Captain Blood, Michael Curtiz, 1935)Errol Flynn (Captain Blood)Coisa fofa da mãe. Aqui vemos o porque nenhuma mulher da Hollywood dos anos 30 podia ser vista ao lado de Errol Flynn e continuar com a reputação intacta: o homem era irresistível e faz por merecer a expressão atemporal In Like Flynn. É em Capitão Blood que tudo realmente começa para Flynn: é o primeiro filme que protagoniza em Hollywood, o primeiro ao lado de Miss Havilland e o ponto em que ele surge de total desconhecido que só fazia pontas para um dos maiores astros dos anos 30 e 40. E Michael Curtiz nos legou alguns grandes exemplos de aventura e ação, apesar de ser mais lembrado por Casablanca, é com os filmes ao lado de Flynn que Curtiz se mostra capaz de manter o enfadado público atual eletrizado com seus filmes de 75 anos atrás e, cá entre nós, Capitão Blood é o meu filme de pirata favorito. E que bonito – tudo que Flynny e Douglas Fairbanks construíram durante o século XX foi destruído pelo Johnny Depp na última década. Que bonito.

4- Um Punhado de Bravos (Objective, Burma! Raoul Walsh, 1945)Objective, Burma! (1945)Raoul Walsh foi mesmo o molde para todos os filmes de guerra dos últimos 70 anos, sobretudo em Fuller e Spielberg, a prova está documentada em cada sequência de Um Punhado de Bravos. Prova maior ainda é o quanto Errol Flynn rendia nas mãos de Walsh, ele era um ator completamente distinto sob o comando do diretor e vai ver por isso o filme começa com vários soldados cheios de frescuras, fazendo as unhas, lavando seus collants (!?!), um anuncio que os tempos de Flynn usando collant tinham terminado e aqui deveria se comportar feito macho.
Um lance histórico bacana é o quanto os ingleses e australianos ficaram putos com esse filme, por fazer parecer que os americanos ganharam toda a guerra sozinhos, pois a tal da Operação Birmânia foi predominantemente composta por soldados da Inglaterra e Austrália. Nada como manipular pessoas através do cinema…

5- As Aventuras de Robin Hood (The Adventures of Robin Hood, Michael Curtiz/William Keighley, 1938)Olivia de Havilland Errol Flynn (The Adventures of Robin Hood)Ah, todos queles homens alegres e coloridos! Sabe como são as coisas, o povo ainda não estava acostumado com cinema em technicolor, então exagerava um pouco. É fato: Robin Hood será associado eternamente a imagem de Errol Flynn e seu collant verde, ele não foi o primeiro e nem o último que encarnou a personagem, mas de alguma forma Flynn é único e todos agradecemos por Jimmy Cagney não ter ficado com o papel.
Robin Hood foi o primeiro filme que vi com Mr Flynn e é mesmo impossível não cair nas graças dele (ah, esses homens hiperativos!), sobretudo se lembrarmos daquela memorável luta de sombras, a qual futuramente seria reprisada em The Sea Hawk com deslumbrante fotografia em preto e branco, enquanto a trilha sonora de Erich Wolfgang Korngold climatiza tudo e um pouco mais em ambos os casos. Também nunca esquecerei da primeira vez que vi Flynn quando eu era criança: vi um tipo dando tchauzinho para o Pernalonga em Rabbit Hood (Chuck Jones, 1949) e só anos mais tarde, já na adolescência, finalmente soube que aquele cara era o Errol Flynn!
É durante as filmagens de Robin Hood que Miss Havilland decide começar a torturar Mr Flynn para que este deixe sua esposa para ficar com ela, iniciativa esta que causou problemas no collant dele (se é que me entendem), como a própria Havilland confessou no documentário Adventures of Errol Flynn.

6- O Intrépido General Custer (They Died with Their Boots On, Raoul Walsh, 1941)Olivia de Havilland, Errol Flynn (They Died With Their Boots On)Com um título original desses não tem como não sair correndo para ver o filme, se ouvirmos uma das mais famosas trilhas do western clássico (a composta por Max Steiner) fica mesmo impossível resistir. Flynn e Walsh se unem pela primeira vez e não mais desgrudam tanto profissional quanto socialmente, adotando uma postura de irmão mais velho e caçula, mesmo Walsh tendo idade para ser pai de Flynny. Deve ser por isso que gosto mais da parceria Flynn-Walsh do que a Flynn-Curtiz, a presença de Flynn fluía melhor nos filmes de Walsh, é como se falassem a mesma língua e não estou fazendo piada com as dificuldades notórias de Curtiz com a língua inglesa, mas porque era visível na tela a afinidade dos dois malucos.
Numa das inúmeras cinebios de personagens históricas banhadas de muita licença poética e pouca realidade e que só a Hollywood dos anos dourados sabia nos proporcionar, vemos Flynny num dos seus mais dilacerantes momentos profissionais: a cena de despedida entre Custer e sua esposa é também a cena de despedida da parceria romântica entre Flynn e Havilland, era alí que acabava um dos mais entusiasmantes casais da tela.

7- Sangue e Prata (Silver River, Raoul Walsh, 1948)SILVER RIVER (1948) Errol FlynnE a bíblia vai ao velho oeste. Último filme oficial do duo Flynn-Walsh, é um imenso western do Walsh e um tremendo trabalho do Flynn, relembrando os anos em que foi garimpeiro na Papua Nova Guiné. Conta a história da ascenção e derrocada do império da prata no velho oeste, onde Flynny assume uma sensacional posição de anti-herói com caráter duvidoso ao encarnar o rei da prata, a versão mais argêntica e sossegada do Daniel Plainview.

8- Olhando a Morte de Frente (Rocky Mountain, William Keighley, 1950)Rocky Mountain (1950) Errol Flynn & Patrice WymoreÚltimo western de Flynn e uma grata surpresa, quando o assisti não esperava muita coisa desse faroeste e acabei me deparando com um exemplar excelente. Fotografia deslumbrante, trama fatalista, enquanto Flynn desponta mais másculo e melancólico do que nunca, anos-luz dos tempos saltitantes de Robin Hood sob a batuta parcial do mesmo diretor. Certamente um dos filmes que mais recomendaria para se conhecer o trabalho de Mr Flynn, além disso o desgraçado saiu com mais uma esposa debaixo do braço durante as filmagens.

9- A Glória de Amar (That Forsyte Woman, Compton Bennett, 1949)Greer Garson,  Janet Leigh, Robert Young, Errol Flynn (That Forsyte Woman)Quer ser respeitado como ator? Vai filmar com um cineasta inglês sobre um conto da Inglaterra vitoriana que tu vira Laurence Olivier! Ao menos era isso que se pensava e Mr Flynn também caiu nessa, não sem colher bons frutos, pois é passível de se dizer que o seu Forsyte é o trabalho mais desenvolvido de sua carreira, especialmente porque ele consegue deixar a sua irrestibilidade natural de lado e não só consegue se vender como aquele homem frio de negócios, como rouba o filme para si, enquanto Compton Bennett volta à sua obsessão com pianista-martirizada-por-homem-autoritário que tanto fez sua fama em O Sétimo Véu. Uma pena Flynn não ter sido bem aproveitado para além dos filmes de aventura.

10- Três Dias de Glória (Uncertain Glory, Raoul Walsh, 1944)Uncertain Glory (1944) - Errol Flynn & Paul LukasGrande propaganda de guerra, mas ao contrário de muitos dos contemporâneos do estilo, este é efetivamente bom e consta um dos melhores papéis de Flynn, encarnanado um anti-herói pouco comum em sua carreira, um criminoso que finge ser um mártir de guerra e cujo desenvolvimento durante o filme é a dúvida entre ser um covarde vivo ou um herói morto. É exatamente por conta desse tipo de filme que Flynny deveria ser mais lembrado pelas parcerias com Walsh do que com o Curtiz.

11- Revolta (Edge of Darkness, Lewis Milestone, 1943)Edge of Darkness - Errol Flynn & Ann SheridanÉ um grande filme de modo geral, mesmo o cunho propagandista não interfere, Flynn está mais contido do que o usual, Ann Sheridan, Walter Huston e Ruth Gordon compensam cada segundo em cena, além da deslumbrante sequência inicial e o pouco comum ponto de vista da resistência norueguesa, mas talvez sua duração seja mais longa do que o necessário. Nunca cansaremos de ver nazistas no cinema, todos aqueles homens tão impetuosos e bem vestidos… Ninguém se vestia melhor do que os nazis, o figurino impecável é de morrer de inveja, a tal da superioridade ariana realmente era viável, mas só nas coleções outono/inverno.

12- Raízes do Céu (The Roots of Heaven, John Huston, 1958)The roots of heaven - Errol Flynn, Trevor HowardE os três enfants terribles da Hollywood dos anos 30/40 se unem: Errol Flynn, Orson Welles e John Huston – agora não-tão-jovens, mas ainda terríveis. Some-se ainda mais um maluco, só que da literatura – Romain Gary – e a bagunça está formada em uma história de Gary preocupada com o abuso do homem sobre o animal (que o diga White Dog do Sam Fuller), preconizando um assunto que só viraria moda décadas mais tarde. O próprio Huston renegava este filme, mas putz, eu gosto dele, mesmo sendo uma bagunça, o filme possui uma força estranhamente peculiar, por isso ele está melhor colocado nesta listagem do que alguns outros, mesmo porque nenhum outro cineasta teve mais filmes falhos que são ao mesmo tempo obras-primas.
Não sei exatamente o que pensar quanto a sua natureza ideológica, baseado no livro de Gary – um defensor dos animais, mas adaptado por Huston – um caçador, não sei o que pensar da coisa toda, tanto vê-lo exclusivamente sob a óptica do idealismo ou sob a do cinismo me parece perspectivas não adequadas, talvez a intenção seja mesmo essa, algo como a versão “Rede de Intrigas do Greenpeace e PETA”, onde parte da galera tem preocupações sinceras, outra parte se preocupam por interesses próprios e a terceira parte está pouco se fodendo para qualquer coisa. Flynn mostra a sua faceta bêbada em tempo integral neste que foi um dos seus últimos filmes, pois morreria no ano seguinte, logo agora que finalmente estava sendo reconhecido como ator de verdade e não apenas um astro. As filmagens foram problemáticas do início ao fim, como era comum aos filmes de Huston, especialmente porque Darryl Zanuck ficou enchendo a paciência no set, pois não queria deixar a sua Juliette Greco solta nas savanas ao lado de Flynn e Huston, dois dos mais “perigosos” homens de que se tinha notícia.
A divertidíssima participação de Jude Law encarnando Flynn em O Aviador me remeteu imediatamante àquela historinha lendária (como todas as outras milhares de brigas que Flynny arrumou durante a vida – ninguém fez mais amigos através de socos do que ele) e ocorrida em meados dos anos 40 entre o duo Flynn-Huston. Segundo o narrado, a briga começa porque Flynn teria dito algo grosseiro sobre Havilland e Huston tomado as dores da ex-amante (não se fazem mais cavalheiros como antigamente!), daí eles foram para o jardim, lutaram boxe durante horas e ambos foram parar no hospital, Flynn com as costelas destruídas e Huston com o nariz quebrado.

*Da série: Este post foi programado, eu não estou aqui!

Publicado por Adriana Scarpin

Bibliófila, ailurófila, cinéfila e anarcafeminista. Really. Podem me encontrar também aqui: https://linktr.ee/adrianascarpin

3 comentários em “Centenário de Errol Flynn – Parte 1

  1. fantástico…uma parte que vc escreveu parece ter saído da minha cabeça…

    “com os filmes ao lado de Flynn que Curtiz se mostra capaz de manter o enfadado público atual eletrizado com seus filmes de 75 anos atrás e, cá entre nós, Capitão Blood é o meu filme de pirata favorito. E que bonito – tudo que Flynny e Douglas Fairbanks construíram durante o século XX foi destruído pelo Johnny Depp na última década. Que bonito.”

    não poderia isso ser mais verdadeiro

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