Verehrter Doktor:
Agora o senhor também alcançou os sessenta anos, enquanto eu, seis anos mais velho, me aproximo do fim da vida e posso esperar em breve ver o fecho do quinto ato dessa algo incompreenssível e nem sempre divertida comédia.
Se eu ainda tivesse preservado crença na “onipotência” dos pensamentos, não deveria deixar passar essa oportunidade para enviar-lhe os mais fortes e calorosos votos para os anos futuros que o senhor deve esperar. deixo essa tola atuação para seus incontáveis contemporâneos, que o terão em mente em 15 de maio.
Mas tenho de lhe fazer uma confissão, que peço não divulgar seja com amigos, seja com inimigos. Importunei-me com a questão de como durante todos esses anos nunca procurei sua companhia e usufruí de uma conversa com o senhor (supondo que tal não lhe seria um incômodo).
A resposta a esta confissão é extremamente íntima: penso que o evitei a partir de uma espécie de temor de encontrar meu ‘duplo’ (doppelgängerscheu). Não que eu em geral seja facilmente inclinado a me identificar com qualquer outra pessoa ou que eu tenha qualquer outro desejo de esquecer a diferença de nossos dons que me separa do senhor. Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e as conclusões que reconheço como meus próprios. Seu determinismo e seu ceticismo – o que as pessoas chamam de pessimismo-, sua profunda apreensão das verdades do inconsciente e da natureza biológica do homem, o modo como o senhor desmonta as convenções sociais de nossa sociedade, a extensão em que seus pensamentos estão preocupados com a polaridade do amor e da morte, tudo isso me toca com uma estranha sensação de familiaridade. Assim, ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição – realmente a partir de uma fina auto-observação – tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho. De fato, acredito que, fundamentalmente, o senhor é um explorador das profundezas, não fosse o senhor assim, seus dons artísticos, seu domínio da linguagem e sua criatividade teriam atuado livremente e feito do senhor algo mais agradável para grande número de pessoas. É natural que eu prefira o investigador. Mas perdoe-me por deixar-me levar pela psicanálise; simplesmente não posso fazer nada mais. Sei, porém, que a psicanálise não é o meio para alguém se tornar popular.
In Herzlicher Ergebenheit,
Ibr Freud
Carta de Sigmund Freud para Arthur Schnitzler
14 de maio, 1922
Livro: Freud & Schnitzler – Sonho Sujeito ao Olhar (Pedro Heliodoro Tavares)