Não devo mentir, as liberdades tomadas em relação à novela Medo (Angst) me causaram grande desconforto. Em questões de moralidade, o trabalho de Zweig muito me lembrava O Primo Basílio de Eça de Queiroz – onde uma dona de casa enfadada resolve ter um caso simplesmente por não ter nada mais produtivo para fazer. O que faz Rossellini a respeito disso? Dá um motivo a ser desculpado pela sociedade, para que sua protagonista ganhe a simpatia do público de imediato, ele a mostra como uma mulher cujo marido estava preso num campo de concentração e depois internado num hospital (num tom ideológico ainda cheirando à pós-guerra e neo-realismo), dando-lhe o motivo da solidão para tal “deslize moral” (algo como uma revitalização da Ilsa em Casablanca), o que acaba tirando parte da extrema complexidade da protagonista. E, afinal, seria este um atentado de mea-culpa para com os guardiões da moral nos EUA, do casal Bergman-Rossellini?
Tirando essa sensação de mea-culpa, é um grande filme e sua tensão psicológica às vezes remete aos melhores momentos de Hitchcock, não só ajudado pela presença de La Bergman, mas principalmente pela trilha sonora exuberante composta pelo irmão de Roberto, Renzo Rossellini, enquanto o estilo noir em todo o seu aspecto e essência toma conta da narração. Tal como Suspeita do velho Hitch, La Paura é um mapa da paranóia conjugal, mas com o alívio de não considerar que o marido seja supostamente um assassino, mas sim o medo sufocante de que o mesmo venha a saber mais do que o necessário do que se passa na vida e na mente da esposa. Nesse sentido o filme de Rossellini se torna quase um De Olhos Bem Fechados ao contrário, o que não é nenhuma surpresa já que os autores dos livros de que originaram os respectivos filmes, Zweig e Schnitzler, formavam uma dinâmica literária como discípulo-mestre.
Algo que se deve exaltar acima de tudo nas escolhas de Rossellini são os incríveis paralelos entre o comportamento manipulado da protagonista e as experiências laboratoriais com animais, assumindo o fato do marido da adúltera ser um cientista, o filme vai sendo conduzido como se a personagem principal estivesse sendo testada à exaustão num laboratório – com altos e baixos de pressão e batimentos cardíacos – até o corpo e a mente não aguentarem mais. As qualidades indiscutíveis desses momentos fazem desaparecer qualquer deslize do filme (como a já citada apresentação da protagonista), fazendo com que o resultado geral seja nada menos do que brilhante.
Nota 1: É bom comentar que o grande ponto de tensão da novela do Zweig (e do filme também) gira em torno de um anel e que os protagonistas têm o sobrenome Wagner. É pouco provável que isso seja apenas coincidência.
Nota 2: Uma coincidência verdadeira é o fato de logo depois de terminado este último filme, o casamento da dupla Bergman-Rossellini entrou em colapso – provando mais uma vez que se infiltrar no universo matrimonial caótico desses malditos escritores vienenses gera crises irreversíveis em casamentos.