Todavia, naquela etapa de sua carreira, a única via de escapatória que lhe resultava acessível era a do afundamento na sexualidade. Ela tinha começado por tolerar, deliberadamente, a fantasia de viver uma aventura amososa com seu beau ténébreux, o desconhecido, mas excitantemente notório por sua má reputação, Urbain Grandier. E, claro, com o tempo, uma deliberada e ocasional indulgência tornou aquele estado incipiente em uma inclinação irresistível. O hábito foi convertendo as fantasias sexuais em imperiosa necessidade. O beau ténébreux cobrou uma existência autônoma, totalmente independente da vontade da irmã Jeanne. Em lugar de ser ele o regozijo de sua imaginação, chegara a ser ela sua escrava. Mas a escravidão é humilhante. Além disso, a consciência de que já não se tem o controle dos pensamentos nem dos atos é uma forma, inferior sem dúvida, mas efetiva, dessa autotranscendência a qual todo ser humano aspira. Irmã Jeanne tinha tentado liberar-se da servidão das imagens eróticas e não tinha conseguido outra coisa que as seguir evocando; a única liberdade que podia conseguir era a liberdade de odiar a si própria.
O eu fenomênico está condicionado por um Ego puro ou Atman da mesma natureza que o Fundamento Divino de todo ser. Fora do quarto principal (até que a alma tenha se tornado altruísta), onde «ninguém além de Deus pode penetrar», entre o divino Fundamento e o eu consciente, encontra-se a consciência subliminal, quase impessoal em seus contornos difusos, mas tomando corpo às vezes no subconsciente pessoal, com suas acumulações de putrefatos resíduos, seus enxames de ratos e negros escaravelhos e seus fortuitos escorpiões e suas víboras. Este subconsciente pessoal é a guarida onde se esconde o morador criminal e lunático que nos habita: o locus do pecado original. Mas o fato de o subsconsciente individual estar associado a um maníaco não é incompatível com o fato de também estar associado (de forma inteiramente insconsciente) com o Fundamento Divino. Nascemos com o Pecado Original, mas também nascemos com a Virtude Original – com capacidade para a graça, segundo os termos da teologia do ocidente, com um «brilho», com um ponto crítico da alma, com um fragmento de consciência não decaída, subsistindo do estado de inocência primal e conhecido tecnicamente como sindéresis. Os psicólogos freudianos prestam muito mais atenção ao pecado original que à virtude original. Investigam sobre os ratos e os negros escaravelhos, mas resistem a ver a luz interior. Jung e seus seguidores demonstraram ser algo mais realistas. Ulrapassando os limites do subconsciente individual, começaram a explorar o domínio onde a mente, tornando-se cada vez mais impessoal, é absorvida pelo meio psíquico fora do qual os egos individuais são cristalizados. A psicologia junguiana vai além do maníaco imanente, mas pára a pequena distância do Deus imanente.
*Os Demônios de Loudun (The Devils of Loudun, Aldous Huxley, 1952)
Fato 1: Quando li Os Demônios de Loudun, Sister Ruth não me saía da cabeça (Jeanne e Ruth passam exatamente pelo mesmo processo de histeria catapultado por um ambiente supostamente “assombrado” e o vulto do mulherengo local pelo qual focam suas fantasias, além da forçada repressão sexual e total falta de altruísmo e empatia das mesmas) e Black Narcissus foi mesmo o motivo pelo qual Russell resolveu filmar o livro do Huxley, embora este tenha muito mais em comum com Powell & Pressburger e seu universo hindu do que a visão sempre notoriamente genital de Russell.
Fato 2: Por que todo mundo menciona The Crucible do Arthur Miller como o maior expoente literário/teatral relativo ao macarthismo quando Huxley publicou este livro um ano antes sobre o mesmo tema da histeria coletiva como analogia das caças às bruxas de McCarthy? Ambos camuflados com eventos reais de séculos anteriores, é claro, mas só nos anos 60 que a versão de Huxley virou teatro pelas mãos de John Whiting. Tudo bem, Orson Welles fez a mesma coisa quando leu After Many a Summer Dies the Swan com o qual teve um momento de inspiração divina e o tranformou num filme chamado Cidadão Kane, mas ninguém menciona muito isso por aí também.
The Devils of Loudun (Aldous Huxley, 1952)
CurtirCurtir