24 Frames: Os Demônios (The Devils, Ken Russell, 1971)

Todavia, naquela etapa de sua carreira, a única via de escapatória que lhe resultava acessível era a do afundamento na sexualidade. Ela tinha começado por tolerar, deliberadamente, a fantasia de viver uma aventura amososa com seu beau ténébreux, o desconhecido, mas excitantemente notório por sua má reputação, Urbain Grandier. E, claro, com o tempo, uma deliberada e ocasional indulgência tornou aquele estado incipiente em uma inclinação irresistível. O hábito foi convertendo as fantasias sexuais em imperiosa necessidade. O beau ténébreux cobrou uma existência autônoma, totalmente independente da vontade da irmã Jeanne. Em lugar de ser ele o regozijo de sua imaginação, chegara a ser ela sua escrava. Mas a escravidão é humilhante. Além disso, a consciência de que já não se tem o controle dos pensamentos nem dos atos é uma forma, inferior sem dúvida, mas efetiva, dessa autotranscendência a qual todo ser humano aspira. Irmã Jeanne tinha tentado liberar-se da servidão das imagens eróticas e não tinha conseguido outra coisa que as seguir evocando; a única liberdade que podia conseguir era a liberdade de odiar a si própria.

O eu fenomênico está condicionado por um Ego puro ou Atman da mesma natureza que o Fundamento Divino de todo ser. Fora do quarto principal (até que a alma tenha se tornado altruísta), onde «ninguém além de Deus pode penetrar», entre o divino Fundamento e o eu consciente, encontra-se a consciência subliminal, quase impessoal em seus contornos difusos, mas tomando corpo às vezes no subconsciente pessoal, com suas acumulações de putrefatos resíduos, seus enxames de ratos e negros escaravelhos e seus fortuitos escorpiões e suas víboras. Este subconsciente pessoal é a guarida onde se esconde o morador criminal e lunático que nos habita: o locus do pecado original. Mas o fato de o subsconsciente individual estar associado a um maníaco não é incompatível com o fato de também estar associado (de forma inteiramente insconsciente) com o Fundamento Divino. Nascemos com o Pecado Original, mas também nascemos com a Virtude Original – com capacidade para a graça, segundo os termos da teologia do ocidente, com um «brilho», com um ponto crítico da alma, com um fragmento de consciência não decaída, subsistindo do estado de inocência primal e conhecido tecnicamente como sindéresis. Os psicólogos freudianos prestam muito mais atenção ao pecado original que à virtude original. Investigam sobre os ratos e os negros escaravelhos, mas resistem a ver a luz interior. Jung e seus seguidores demonstraram ser algo mais realistas. Ulrapassando os limites do subconsciente individual, começaram a explorar o domínio onde a mente, tornando-se cada vez mais impessoal, é absorvida pelo meio psíquico fora do qual os egos individuais são cristalizados. A psicologia junguiana vai além do maníaco imanente, mas pára a pequena distância do Deus imanente.

*Os Demônios de Loudun (The Devils of Loudun, Aldous Huxley, 1952)

Fato 1: Quando li Os Demônios de Loudun, Sister Ruth não me saía da cabeça (Jeanne e Ruth passam exatamente pelo mesmo processo de histeria catapultado por um ambiente supostamente “assombrado” e o vulto do mulherengo local pelo qual focam suas fantasias, além da forçada repressão sexual e total falta de altruísmo e empatia das mesmas) e Black Narcissus foi mesmo o motivo pelo qual Russell resolveu filmar o livro do Huxley, embora este tenha muito mais em comum com Powell & Pressburger e seu universo hindu do que a visão sempre notoriamente genital de Russell.

Fato 2: Por que todo mundo menciona The Crucible do Arthur Miller como o maior expoente literário/teatral relativo ao macarthismo quando Huxley publicou este livro um ano antes sobre o mesmo tema da histeria coletiva como analogia das caças às bruxas de McCarthy? Ambos camuflados com eventos reais de séculos anteriores, é claro, mas só nos anos 60 que a versão de Huxley virou teatro pelas mãos de John Whiting. Tudo bem, Orson Welles fez a mesma coisa quando leu After Many a Summer Dies the Swan com o qual teve um momento de inspiração divina e o tranformou num filme chamado Cidadão Kane, mas ninguém menciona muito isso por aí também.

Publicidade

Publicado por Adriana Scarpin

Bibliófila, ailurófila, cinéfila e anarcafeminista. Really. Podem me encontrar também aqui: https://linktr.ee/adrianascarpin

5 comentários em “24 Frames: Os Demônios (The Devils, Ken Russell, 1971)

  1. But at this stage in her career the only avenue of escape that presented itself was a descent into sexuality. She had begun by deliberately indulging in the imagination of an intimacy with her beau tenebreux, the unknown but titillatingly notorious M. Grandier. But in time deliberate and occasional indulgence turned into irresistible addiction. Habit converted her sexual fantasies into an imperious necessity. The beau tenebreux took on an autonomous existence that was altogether independent of her will. Instead of being the mistress of her imagination, she was now its slave. Slavery is humiliating; and yet the consciousness of being no longer in control of one’s own thoughts and actions is a form, inferior no doubt, but effective, of that self-transcendence to which all human beings aspire. aspire. Soeur Jeanne had tried to free herself from her servitude to the erotic images she had conjured up; but the only freedom she could achieve was freedom to be the self she abhorred.

    …that the phenomenal self is underlain by a Pure Ego or Atman, which is of the same nature as the divine Ground of all being. Outside the central chamber where (until the soul has become selfless) “none but God may enter,” between the divine Ground and the conscious self, lies the subliminal mind, almost impersonal at its melting fringe, but crystallizing, as the phenomenal self is approached, into the personal subconscious with its accumulations of septic rubbish, its swarms of rats and black beetles and its occasional scorpions and vipers. This personal subconscious is the haunt of our indwelling criminal lunatic, the locus of Original Sin. But the fact that the ego is associated with a maniac is not incompatible with the fact that it is associated (all unconsciously) with the divine Ground. We are born with Original Sin; but we are also born with Original Virtue — with a capacity for grace, in the language of Western theology, with a “spark,” a “fine point of the soul,” a fragment of unfallen consciousness, surviving from the state of primal innocence and technically known as the synteresis. Freudian psychologists pay far more attention to Original Sin than to Original Virtue. They pore over the rats and the black beetles, but are reluctant to see the inner Light. Jung and his followers have shown themselves to be somewhat more realistic. Overstepping the limits of the personal subconscious, they have begun to explore the realm where the mind, growing more and more impersonal, merges into the psychic medium, out of which individual selves are crystallized. Jungian psychology goes beyond the immanent maniac, but stops short of the immanent God.

    The Devils of Loudun (Aldous Huxley, 1952)

    Curtir

Deixe um comentário

Faça o login usando um destes métodos para comentar:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: