24 Frames: Ringmaster

… e eu? Quem sou eu nessa história? O carrossel? O autor? O apresentador? Um transeunte? Eu sou você. De fato, qualquer um como você. Eu sou a personificação do seu desejo, em desejar saber tudo. As pessoas sempre sabem apenas um lado da realidade e por quê? Porque conseguem enxergar apenas um lado das coisas, mas eu vejo cada aspecto porque consigo ver e estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Mas onde estamos? Num palco? Num estúdio? É difícil dizer. Numa rua? Oh! Nós estamos em Viena.

Há muitos anos não revia La Ronde, por mais que este seja um dos meus filmes favoritos, mas esta semana fui obrigada a fazê-lo por conta da minha última sessão de terapia de regressão onde introjetei o tempo todo o Walbrook como ringmaster, saindo das galerias subterrâneas em penumbra de Viena à la Harry Lime (preciso rever O Terceiro Homem também) através de uma brecha de luz para as ruas, o observador onisciente de tudo ao seu redor, embora esse meu pequeno Walbrook pessoal de cartola, bigode e bengala frequenta e observa um ambiente – sobre o qual evidentemente não entrarei em detalhes – mais condizente com Jean Genet, Christopher Isherwood e nazisploitation do que propriamente Arthur Schnitzler e Max Ophuls.
Embora o ringmaster não exista na peça de Schnitzler, é uma criação perfeitamente coerente com o que o escritor lidava em sua literatura e o que me impressionou mesmo nessa sessão de regressão foi como tal personagem ficou tão entranhado e por tanto tempo no meu subconsciente de tal forma que basicamente tudo que ele dizia se refez na minha introjeção e revê-lo essa semana me chocou profundamente, foi uma sensação de déjà vu, mas não pelo filme e sim pela minha regressão. Uma experiência sensacional.
A questão é que esse meu ringmaster da vida diária talvez seja mais parecido com o Christoph Waltz em Water for Elephants que aparece alí como observado mas que tem o controle absoluto do seu espetáculo, ou Ustinov em Lola Montez, ou Marcello em 8 1/2 ou até o próprio Walbrook em Red Shoes e Oh Rosalinda! do que esse ringmaster indelével e meramente observador em La Ronde que remonta parcialmente ao Marcel de Em Busca do Tempo Perdido ou o Christopher de Goodbye to Berlin. E é exatamente por conta disso que raramente consigo recordar dos meus sonhos, essa falta de controle do subconsciente tomando o controle do ringmaster e, tendo a regressão a estrutura de um sonho, sempre há uma paralisia total quando tento transformar esse meu ringmaster em alguém suscetível à ação e auto-observação, justamente porque perco o controle do espetáculo e isso não permito jamais, é exatamente aí que entra a diferença entre o meu ringmaster introjetado e o do Ophuls, o meu além de observar também deve controlar o que observa sem se deixar ser observado.
Quando ocorre essa paralisia de não poder criar e controlar os personagens, num momento “Ladies and gentlemen, I’m sorry to tell you that Miss Page is unable to dance tonight, nor indeed any other night.” é necessário que o terapeuta traga o seu método de indução e anule a presença que está provocando tal paralisia, no caso do meu terapeuta é colocada uma cortina roxa simplesmente porque se fosse a vermelha eu iria querer abrí-la e ainda não estou preparada para isso. A regressão/indução é exatamente isso, contar uma história a partir de todas as imagens que vão fluindo espontaneamente do subconsciente e se algo provoca a paralisia é necessário que seja resgatado e passe para a fase seguinte. O mais peculiar de toda essa indução foi o fato de Huxley ou o budismo não terem se apresentado de forma paupável, talvez porque isso já faça parte da minha consciência e não precise deles para me guiar pelo submundo, papel este que coube ao senhor Walbrook, persona pela qual provavelmente ficarei obcecada a partir de agora.
A conclusão da sessão foi de que eu deveria me impor menos essa função de observador amoral e constante da vida humana para participar da minha própria vida tornando-me assim também um ser observável, para que se crie uma evolução, para que o Schnitzler em questão seja outro e o cineasta seja Kubrick, o de Um Breve Romance de Sonho/Eyes Wide Shut, onde o progagonista também é uma espécie de ringmaster mais ativo, consciente e participativo do que se passa ao seu redor e não o maldito dominador com chicote que fica tocando sinetas em minha mente. Quem conseguiu isso lindamente foi aquele outro Isherwood reescrito na forma de Christopher and his Kind onde ele finalmente conseguiu transformar o seu ringmaster da primeira versão de Goodbye to Berlin e assumir fazer parte da ação e suas consequências, mas para chegar a isso foram várias décadas, será que terei todo esse tempo?

Nota: No mais, todo mundo deveria fazer regressão/indução, estou falando das profundezas mesmo, mas infelizmente as coisas não são tão fáceis, nem todos podem se sentir aptos a esse tipo de coisa, em todo caso recomendo assim mesmo, afinal, explorar, tentar descobrir e entender mesmo as coisas pelas quais não nos identificamos é sempre a melhor proposta.

Nota para os paraquedistas: Este não é um post sobre cinema ou sobre os filmes/livros citados. Dããã. É sobre experiências pessoais que deveriam ser informativas para todo tipo de gente e que de certa forma ajudam a compreender melhor as artes em geral, assim como as pessoas ao seu redor. E jamais, jamais mesmo, confunda introjeção com fatos, isso é um passo para crises psicóticas – por isso que devo ter cuidado com as coisas que posto aqui, não é todo mundo que faz terapia e vê o que foi postado como tal. Afinal, não haveria tanta gente achando que o cinema do David Lynch é “mucho loco” ou que o Huxley foi um pirado em ácido ou chamando Tales of Hoffmann de “opera on LSD” se todos fizessem uma indução de vez em quando.

Nota de tradução: É particularmente difícil traduzir reigen aqui, na peça de Schnitzler o círculo referido é o da dança infantil, equivalente à nossa “Ciranda Cirandinha, Vamos todos cirandar, Vamos dar a meia volta, Volta e meia vamos dar, O Anel que tu me destes, Era vidro e se quebrou, O amor que tu me tinhas, Era pouco e se acabou”, mas no filme de Ophuls a referência visual recai no carrossel. Em todo caso, o sentido é o mesmo.

Publicado por Adriana Scarpin

Bibliófila, ailurófila, cinéfila e anarcafeminista. Really. Podem me encontrar também aqui: https://linktr.ee/adrianascarpin

7 comentários em “24 Frames: Ringmaster

  1. Seria o Hartman o ringmaster perverso do Full Metal Jacket? Só que ali é como se a vida da encenação atropelasse ele pelos próprios métodos (todo sistema lógico é auto-destrutivo?). No EWS já parece uma visão mais “saudável”, por pelo menos buscar se relacionar com o inconsciente. O cara sabia mesmo como terminar as coisas.
    O Bebê Santo de Mâcon do Peter Greenaway me lembra muito o Lola Montés. Não tem um equivalente tão interessante do Ustinov, mas tem o espetáculo entregue ao povo como numa bandeja (às vezes com cuspe em cima da comida), o desfile de situações e o plano final idêntico.

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